domingo, 25 de agosto de 2013

A cinematográfica crise da Cinemateca Brasileira

A cinematográfica crise da Cinemateca Brasileira


Diretor executivo da Cinemateca Brasileira desde setembro de 2002, Carlos Magalhães estava na sede da instituição, na Vila Mariana, quando recebeu um telefonema do recém-empossado secretário do Audiovisual, Leopoldo Nunes. O novo secretário queria cancelar sua primeira reunião com Magalhães, agendada para o mesmo dia em Brasília, e comunicar que a ministra da Cultura, Marta Suplicy, havia perdido a confiança nele. A exoneração, em janeiro deste ano, daria início a uma crise político-administrativa para a qual ainda não há uma solução satisfatória.
Fundada em 1956 e responsável por preservar e difundir o acervo audiovisual do país, a Cinemateca é a guardiã de mais de 30 mil títulos. Agora, corre o risco de ter suas atividades paralisadas. As origens da crise estão num relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) a que Época SÃO PAULO teve acesso. O documento é resultado de uma auditoria que envolve a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), entidade civil criada em 1962, e a Secretaria do Audiovisual (SAv) – subordinada ao Ministério da Cultura (MinC).
Para entender a trama e seus desdobramentos, é necessário destacar dois fatos importantes ocorridos durante a gestão Magalhães. Em 2003, a Cinemateca, antes vinculada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), passou a responder à SAv. A segunda mudança se deu em 2008, quando a SAC se tornou uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), uma entidade jurídica que pode firmar parcerias com governos. Essa transformação permitiu um termo de parceria entre SAC e SAv, responsável pela transferência de mais de R$ 105 milhões do MinC para a Cinemateca entre 2008 e 2010. Só para comparar, em 2007, antes da assinatura do termo, o repasse foi de apenas R$ 2.679.206; no ano seguinte, saltou para R$ 15.522.570, chegando a R$ 51.911.575 em 2010 (quase 20 vezes o valor transferido três anos antes). Obviamente, não se tratava de “doações”. Tais valores correspondiam a uma série de projetos denominados planos de trabalho, cuja administração ficava sob a responsabilidade da SAC – a quem cabia prestações anuais de contas sobre cada um deles.

Esse caminho menos burocrático para a circulação de dinheiro público viabilizou projetos de interesse da Cinemateca, mas não só. Recursos foram usados também para empreitadas mais ligadas à SAv, como o Laboratório de Cultura Digital e Tecnoestética, que envolvia “ações audiovisuais colaborativas em aldeias indígenas no Norte e Centro-Oeste do país”. O termo foi firmado no ano em que Juca Ferreira substituiu Gilberto Gil no MinC. Procurado, o hoje secretário municipal da Cultura de Fernando Haddad não quis comentar o assunto. De acordo com a CGU, o acompanhamento das prestações de conta competia à SAv. A Pasta, durante a vigência da parceria, foi ocupada por Silvio Da-Rin, Newton Cannito e, já na gestão de Ana de Hollanda no ministério, por Ana Paula Santana, entre janeiro de 2011 e setembro de 2012.
A sede da Cinemateca na Vila Mariana, que passou por várias melhorias durante a gestão Magalhães (Foto: Alf Ribeiro)
Ana Paula é apontada como pivô da perda de confiança em Carlos Magalhães ao autorizar um repasse de aproximadamente R$ 6 milhões à SAC. Como o relatório já tinha sido entregue em maio de 2011, o repasse rendeu um “puxão de orelha” em Marta. A nova secretária executiva do MinC nomeada por ela, Jeanine Pires, quase perdeu o cargo naquela ocasião (Jeanine acabaria saindo em julho deste ano, ao que tudo indica por vontade própria). Ana Paula foi exonerada em outubro de 2012, três meses antes de Magalhães. À época, correram boatos de que o afastamento do diretor executivo era uma vingança do novo secretário do Audiovisual. Um dos articuladores da passagem da Cinemateca do Iphan para o MinC, quando ainda era chefe de Gabinete da SAv, Nunes conquistou depois um cargo no Conselho da Cinemateca, para o qual não conseguiria se reeleger. O secretário nega qualquer influência do episódio em suas decisões. “Fui nomeado em dezembro e, depois de tomar posse, recebi do controle interno do MinC o relatório da CGU”, diz. “Levei o relatório à ministra no começo de janeiro, e ela passou parte do dia e da noite lendo. Não dormiu. De manhã, saiu direto para a Casa Civil, onde pediu a abertura de um processo administrativo disciplinar. Chegou ao ministério e mandou demitir Carlos Magalhães.”
Na época presidida pela professora da USP Maria Dora Mourão e atualmente pelo economista Roberto Teixeira da Costa, a SAC afirma que todas as prestações de conta foram encaminhadas à SAv e contratou a auditoria PricewaterhouseCoopers para provar a lisura dos gastos. Não é essa, porém, a única irregularidade apontada pelo relatório da CGU. O documento questiona a contratação de pessoal terceirizado para os planos de trabalho (que na verdade estariam garantindo o próprio funcionamento da Cinemateca) e o pagamento de uma taxa de administração como forma de remunerar a SAC. A Controladoria pede ainda explicações a respeito de R$ 24 mil gastos com 78 passagens aéreas e cobra a avaliação de cinco acervos adquiridos, sem comprovação de que valiam o que se pagou por eles: Canal 100 (R$ 6 milhões), Glauber Rocha (R$ 3 milhões), Atlântida Cinematográfica (R$ 3,5 milhões), Cinematográfica Vera Cruz (R$ 2,5 milhões) e o da atriz Norma Bengell (R$ 585 mil).
Embora possa acionar a Advocacia-Geral da União (em casos de improbidade administrativa) ou o Ministério Público e a Polícia Federal (se encontrar indícios de crime), a CGU não tem poder punitivo. Até o momento, apesar de o relatório apontar possíveis irregularidades, ninguém foi indiciado e tampouco há evidências de enriquecimento ilícito ou desvio de verba. A maior parte das responsabilidades, inclusive, parece recair sobre a SAv, por não ter fiscalizado devidamente a parceria.
Cena do filme A Morte comanda o Cangaço, que integrou a mostra Clássicos & Raros da Cinemateca Brasileira (Foto: Divulgação)
Ex-diretor do Museu Lasar Segall, Carlos Magalhães assumiu a Cinemateca em meio a uma crise entre dois membros da diretoria de então, Sylvia Bahiense Naves e Carlos Roberto de Souza. Ambos são “herdeiros de Paulo Emílio”, apelido pelo qual ficaram conhecidos os estudantes da USP levados pelo professor Paulo Emílio Salles Gomes para ajudá-lo na gestão da entidade a partir de 1974 – e que acabaram ficando por lá. Ao pedir afastamento por motivos pessoais e de saúde, Sylvia indicou Magalhães para terminar o mandato dela como diretora executiva. Estranhamente, ao assumir o cargo em setembro de 2002, Magalhães nomeou Sylvia como diretora adjunta. Em novembro de 2004, ela acabou exonerada após uma série de conflitos com o novo diretor executivo. Rompendo o reinado dos “pauloemilianos” na Cinemateca, Magalhães preteriu o então diretor adjunto Carlos Roberto e nomeou para a diretoria a coordenadora do centro de documentação, Olga Futemma (na Cinemateca desde 1978), e a coordenadora do laboratório, Patricia de Filippi (irmã de José de Filippi Jr., ex-tesoureiro de Dilma e atual secretário municipal de Saúde). “Magalhães era extremamente controlador, abria e fechava planilhas sem que ninguém conseguisse entender direito como o dinheiro estava sendo gasto”, afirma Souza, que está de licença não remunerada desde março de 2012. “E ele administrava não apenas o orçamento da Cinemateca, mas também o da própria SAC.” Hoje, Sylvia Bahiense trabalha com Leopoldo Nunes na SAv enquanto Olga assumiu interinamente o comando da Cinemateca e Patrícia segue como adjunta. A diminuição de projetos e o fim dos planos de trabalho levaram à não renovação dos contratos da maioria dos funcionários terceirizados. Segundo a CGU, os planos de trabalho empregavam 246 pessoas, sendo 206 pessoas jurídicas e 40 pessoas físicas. Hoje, há um efetivo de 20 servidores públicos, além de terceirizados, totalizando 47 pessoas.
PARALISIA
“Confio plenamente na ministra, que tem cumprido tudo o que nos prometeu”, diz o professor da USP Ismail Xavier, presidente do conselho da Cinemateca. “Ela já anunciou que logo teremos uma solução. Só não sabemos o que esse ‘logo’ significa.” Para dirimir o problema da falta de funcionários, a SAv garante ter elaborado um plano de gestão emergencial. “Não basta”, afirma o também professor da USP e membro do conselho Carlos Augusto Calil. “Estamos perdendo pessoas que passaram anos na Cinemateca. O ministério precisa se posicionar de outra maneira, ou em janeiro de 2014 a instituição para de vez.”
A CGU sugere que, dada a falta de prestação de contas, a SAC seja inscrita no Cadastro de Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos Impedidas. Isso a proibiria de firmar convênios, contratos de repasse ou termos de cooperação de qualquer natureza. Na prática, inviabilizaria acordos como os que permitiram a realização da mostra Clássicos & raros, com o Centro Cultural Banco do Brasil, ou a construção da magnífica sala BNDES por meio da Lei do Audiovisual. Para uma instituição que sobreviveu a incêndios, desalojamentos e uma quase crônica falta de recursos por décadas, não seria a maneira mais digna de sair de cartaz. O que não falta é gente torcendo por um final mais feliz.

Atores em cena

As personalidades envolvidas na trama
Marta Suplicy (Foto: ERBS Jr/Estadão Conteúdo)
Marta Suplicy
Uma transferência autorizada por subordinadas da ministra é apontada como estopim da crise

Carlos Augusto Calil (Foto: Filipe Redondo/FOLHAPRESS)
Carlos Augusto Calil 
Conselheiro da Cinemateca, o ex-secretário da Cultura cobra soluções mais efetivas do ministério

Ismael Xavier (Foto: Daniel Wainstein/Valor)
Ismail Xavier
Presidente do conselho, o professor da USP acredita que as promessas da ministra serão cumpridas. E a crise, contornada

Leopoldo Nunes (Foto: Leonardo Aversa/Agência O Globo)
Leopoldo Nunes
O secretário do Audiovisual (empossado em dezembro) já fez parte do conselho e levou o relatório da CGU à ministraMarta

Roberto Teixeira da Costa  (Foto: Mastrangelo Reino/FOLHAPRESS)
Roberto Teixeira da Costa 
Atual presidente da SAC, contratou uma consultoria para auditar as contas da parceria com a Cinemateca

Carlos Roberto de Souza (Foto: Mastrangelo Reino/FOLHAPRESS)
Carlos Roberto de Souza
Na Cinemateca desde 1974, era coordenador do acervo. Está em licença não remunerada

Carlos Magalhães (Foto: Gabo Morales/FOLHAPRESS)
Carlos Magalhães
Entre 2002 e 2013, viveu uma fase áurea como diretor executivo da Cinemateca. Foi exonerado em janeiro pela ministra Marta

Juca Ferreira (Foto: Adriano Machado/Editora Globo)
Juca Ferreira
Atual secretário municipal da Cultura, substituiu Gilberto Gil no Ministério da Cultura no ano do primeiro termo de parceria com a SAC


As 11 suspeitas

As irregularidades investigadas pela Controladoria-Geral da União nas transferências entre o MinC e a SAC
Contratação de pessoal para o exercício de atividade fim do Ministério da Cultura (MinC), mediante Termo de Parceria nº 632301, na ausência de processo seletivo.
Servidor lotado na Cinemateca é sócio de empresa contratada pela Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), mediante Termo de Parceria, para o exercício do cargo de coordenação de planejamento e gestão da Programadora Brasil III.
Aprovação de planos de trabalho que não continham detalhamento suficiente das despesas dos projetos decorrentes dos convênios e do Termo de Parceria.
Aprovação de Plano de Trabalho sem a produção de parecer apresentado pela SAC sobre a estimativa dos custos do projeto.
Pagamento de taxa de administração como forma de remunerar a SAC pela execução dos projetos vinculados ao Termo de Parceria.
Não adoção de medidas por parte do MinC em relação à não apresentação de prestação de contas dos gastos e receitas efetivamente utilizados em ações vinculadas ao Termo de Parceria firmado com a SAC.
Despesas acima do pactuado em Plano de Trabalho, bem como inclusão de despesas indevidas em ajuste custeado com recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC).
Não demonstração da relação dos recursos de infraestrutura adquiridos com recursos do Plano de Trabalho – Mais Cultura Audiovisual.
Aquisição de bens e serviços, em transferências voluntárias de recursos do FNC, sem a realização de cotação de preços ou aquisição da fornecedora com a menor proposta.
Ausência de avaliação dos acervos adquiridos pelo Plano de Trabalho XVI, de Termo de Parceria firmado com a SAC e custeado com recursos do FNC.
Deficiência nos controles no que se refere aos registros e movimentações da conta bancária do Plano de Trabalho XVI, no âmbito do Termo de Parceria com a SAC.

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